quarta-feira, 23 de março de 2011

As populações tradicionais e as hidrelétricas do Madeira
 
 
 
 
[Kayapó dançam durante protesto contra hidrelétrica  © T Turner]

Hidrelétricas: confirmação de conflitos e impactos

Hidrelétricas em construção na Amazônia Brasileira põem em risco de extinção populações tradicionais, entre elas povos indígenas, a exemplo das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau no Madeira que estão sendo construídas próximas a territórios de quatro povos indígenas em situação de isolamento e risco, os quais desconhecem que grande parte de suas terras está ameaçada e sujeita a destruição. A política indigenista do governo que deveria garantir a proteção desses povos livres tem em seu primeiro plano os grandes projetos. Em nome de um "desenvolvimento” continua ferindo e matando culturas milenares antes mesmo da sociedade ter conhecimento dessas culturas, em contradição à Constituição Federal e a Convenção 169 da OIT que reconhecem ser o Brasil um país pluriétnico.

A triste situação provocada pelos operários na Usina Hidrelétrica de Jirau está confirmando as conseqüências trazidas por estes mega-empreendimentos. Este e outros empreendimentos, além de desrespeitar as populações locais (ribeirinhos, indígenas, quilombolas...), não trata com dignidade os operários que dia a dia arriscam suas vidas nos canteiros de obras, sem condições dignas de trabalho e sem remuneração adequada. E quando reagem a esta situação são taxados como bandidos e vândalos.

Com indignação repudiamos a atitude dos governos estadual e federal em utilizar forte aparato policial para dar segurança a empresas que visam apenas o lucro, enquanto trabalhadores vivem em situação de superexploração; salários baixos; longas jornadas de trabalho; sem atendimento adequado à saúde; transporte de péssima qualidade; falta de segurança e como resultado ainda são ameaçados de demissão. Esta é a realidade vivenciada pelos operários na hidrelétrica do Jirau. Tal atitude do governo cria mais tensões para a sociedade rondoniense, pois o governo que deveria propor segurança para o povo e melhores condições de trabalho para os operários através dos poderes Judiciário, Legislativo e Executivo convocam a Força Nacional para calar a voz popular que grita por justiça e direitos que lhes são garantidos por lei.

As hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira, têm sido palco de ocorrências de desrespeito a legislação trabalhista: denúncia de trabalho análogo ao escravo, impactos ambientais e sociais, transgressões aos direitos das comunidades tradicionais, colapso nos serviços e espaços públicos (hospitais, ruas, escolas, postos de saúde...), alto custo de vida, tendo a taxa do transporte coletivo um das mais altas do país. A insegurança e o medo estão tomando conta dos moradores da capital.

O alerta dos trabalhadores de Jirau soma-se com tantos outros alertas observados não apenas no Brasil, e comprova que os grandes projetos só trazem propagandas ilusórias para a grande massa popular, a exemplo da taxa de energia elétrica em Rondônia, uma das mais caras do país, bem como o crescente desemprego.

Diante de todos os dados já divulgados, acreditamos que os operários são tão vítimas quanto as populações tradicionais, dentre elas os povos indígenas, e toda a biodiversidade fauna e flora. O que nos deixa ainda mais indignados é o fato da mídia sempre estar a serviço dos que detêm o poder, omitindo a verdadeira situação e posição dos trabalhadores.

O Conselho Indigenista Missionário Regional Rondônia, na defesa da vida, une-se nesse momento trágico aos operários de Jirau, que nas suas manifestações conclamam por justiça e direito e exigem que a voz dos trabalhadores seja ouvida e tenha tratamento digno e humano.

Não podemos aceitar que num país dito "democrático” e "popular”, com leis que regem os direitos humanos, ainda prevaleça o modelo de escravidão e exploração entre patrões e operários.


Usinas hidrelétricas do Complexo Rio Madeira: bombas de efeito retardado

Falta de planejamento e omissões por parte das empresas e do governo na construção das usinas hidrelétricas e em relação aos impactos nos permitem prever catástrofes no futuro.

Rebelião no Jirau

Os rondonienses assistiram perplexos na TV ou por internet a um espetáculo apocalíptico assustador: no sítio do Jirau (RO), local da maior obra do Programa de Aceleração de Crescimento (PAC) no Brasil, grande parte das instalações da Camargo Corrêa, empresa responsável pela construção da hidrelétrica, virou cinzas. A revolta dos trabalhadores descontentes não pôde ser controlada pelas forças de segurança. Assim, foram queimados mais de 40 ônibus, carros, casas de alojamento, lan house, etc. Na noite do dia seguinte, a Camargo Corrêa noticiou que tudo voltara ao normal (!) e chamou os trabalhadores de volta. Informou também que medidas de segurança foram reforçadas.

Assim, falta segurança no Jirau! É preocupante saber que o ditado popular: "o brasileiro fecha a porta só depois que o ladrão entra!” se verifica também com uma empreiteira desse porte. Se a Camargo Corrêa não pôde prever uma rebelião com operários que vê todos os dias, quanto menos está preparada para imprevistos provocados por causas naturais, como no caso de mudanças climáticas! É de dar arrepio!

Mas não é a primeira vez que se verifica a falta de planejamento num empreendimento desse porte. Nos primeiros dias da construção da UHE de Santo Antônio, com as primeiras explosões de pedras da cachoeira, toneladas de peixes ficaram represadas e morreram por asfixia. Se essa catástrofe ecológica, entretanto limitada, nos assustou, nos preocupa muito a falta de previsão nos estudos de impactos ambientais (EIA-RIMA) aprovados pelo IBAMA. Esses fatos estão abrindo em nossas mentes uma brecha onde entrevemos a possibilidade de impactos bem maiores tanto a nível social como ecológico.

Em janeiro deste ano, a Camargo Corrêa afirmou para uma autoridade do município de Guajará-Mirim, em visita ao canteiro de obras, que "desde o início das obras do Jirau, houve apenas dois óbitos de operários”. O informante da empresa só pode ter minimizado os dados, visto que, em 2010 operários do Jirau já relatavam mortes de algum membro de sua equipe no trabalho. Não entendemos a falta de transparência da empreiteira: a desconfiança aumenta e aquela brecha vai se abrindo mais.

As empresas têm respostas para todos os problemas. Pelo menos, na fala ou no papel. Na realidade, a coisa é diferente. No Distrito de Jaci-Paraná, até agora não vimos resultados com os projetos disso ou daquilo para "minimizar” os impactos sociais. Pelo contrário, a violência, os homicídios, a venda de bebida e a prostituição aumentaram consideravelmente e o Executivo municipal reconhece que a situação está fora de controle. No referido distrito, dezenas de operários encontraram a morte em decorrência de brigas nos bares. Um jovem trabalhador de Guajará-Mirim foi encontrado morto debaixo das rodas de um caminhão onde tinha sido arrastado pelos agressores para disfarçar um acidente.

No início da construção da UHE de Santo Antônio, indígenas sem contato foram avistados nas proximidades do canteiro de obras. Com a comprovação da presença de vestígios, uma liminar suspendeu os trabalhos até que fosse realizado um inquérito aprofundado pela Fundação Nacional do Índio (Funai). O órgão indigenista oficial se omitiu; Furnas ignorou a liminar, e as obras prosseguiram. Os indígenas não foram mais encontrados e não sabemos se, por um tempo, conseguiram fugir ou se, em nome do progresso, mais um massacre foi perpetrado!

Contaminação pelo mercúrio: sigilo e omissão


Uma bomba de efeito retardado será acionada no dia que serão fechadas as comportas do Jirau. Com a alagação de antigos locais de garimpo da margem direita do rio Madeira, toneladas de mercúrio serão levadas até o leito do rio, agravando a contaminação existente. Na década de 1980, centenas de dragas contaminaram diretamente o leito do rio Madeira. O metal transformado em metilmercúrio é absorvido pelo plâncton e chega até o homem que se alimenta de peixe, através da cadeia alimentar. O peixe não tem fronteiras e percorre centenas, até milhares de quilômetros.

Estudos científicos realizados na década de 1990 e cujos resultados foram publicados nos cadernos da Fiocruz, em 2003, comprovam que a população indígena do município de Guajará-Mirim, cuja dieta principal é o peixe, tem um teor de mercúrio acima do tolerado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Foi relatado o caso de uma criança cuja taxa de mercúrio atingiu 20 vezes o valor limite. As consequências na saúde são gravíssimas. O mercúrio é responsável por más formações neurológicas durante a vida fetal e, por ser cancerígeno, pelo aumento de casos de câncer, e, principalmente, de leucemia e linfoma, doenças raras e gravíssimas, levando, muitas vezes, ao óbito. Em julho de 2008, dois adultos do povo Oro Wari’, internados no Hospital de Base de Porto Velho, um com leucemia aguda e o outro com linfoma de Hodgkin, faleceram com poucos dias de diferença um do outro.

A partir dos anos 1990, o aumento assustador de casos dessas doenças na população indígena e ribeirinha do município de Guajará-Mirim só pode ser explicado pela contaminação por mercúrio.

O monitoramento da taxa de mercúrio na população indígena foi solicitado pela bioquímica responsável pelo estudo, entretanto, depois de 15 anos, ainda não aconteceu. O Ministério Público Federal, que está a par da situação, está se empenhando para que seja realizado um novo estudo. Estamos aguardando.

Se com o garimpo de ouro o rio Madeira tornou-se um "depósito” de mercúrio, isso não justifica que continue a receber tal substância. É lamentável a irresponsabilidade de órgãos ambientais oficiais, como a SEDAM, que anos atrás autorizou o funcionamento de 20 dragas de garimpo no rio Madeira, perto de Porto Velho. Mais recentemente, o Ibama também decidiu fornecer a licença ambiental para Jirau, como se acrescentar toneladas de mercúrio no rio Madeira fosse algo insignificante. A contaminação já existe, mas, maior a contaminação, maior a incidência de casos de câncer, leucemia e malformações fetais, atingindo ribeirinhos de três países: Brasil, Bolívia e Peru; e isso, por centenas de anos. São milhares de pessoas que adoecerão e muitas irão a óbito prematuramente. Infelizmente, não estamos falando de probabilidade como no caso de um país vulcânico que constrói usinas atômicas, mas de certeza.

Apesar da necessidade de se criar mais empregos, nossa consciência relutaria em aceitar a construção de uma usina de armamentos cujas armas seriam vendidas a países em guerra, não é mesmo? Entretanto, cientes dos impactos do Jirau como podemos se conformar com a construção dessa UHE que a longo prazo terá conseqüências semelhantes?

No conceito dos países europeus, a energia hidrelétrica é a menos poluidora. Entretanto, nenhuma barragem na Europa alagou áreas de garimpo. A preocupação dos países da União Européia com a contaminação pelo mercúrio é tal que foi proibida a venda de termômetros de mercúrio. Como vão reagir os europeus quando souberem que objetos de alumínio importados do Brasil foram fabricados com energia proveniente de barragens da Amazônia que alagaram áreas de garimpo, agravando a contaminação de indígenas e ribeirinhos de três países? Por outro lado, para os responsáveis da empresa GDF-Suez, que tem mais de 50% das ações do Jirau e que é a primeira empresa europeia de produção de energia, o lucro prevalece. Os países da Europa procuram o ecológico mais correto dentro de suas fronteiras! Cabe ao Brasil criar essa consciência. Cabe a nós, brasileiros, abrir os olhos para analisar com coragem os impactos do "bezerro de ouro” do desenvolvimento e descobrir quem são os principais beneficiados. Somos a favor do bem estar, mas não a qualquer preço!

[Fonte: CIMI Rondônia e equipe Guajará-Mirim].

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